Amigos leitores d’O Telegrama, sejamos francos: quem não sentiu um certo alívio quando as transferências entre bancos distintos começaram, finalmente, a cair na conta em segundos? Foi como uma brisa de modernidade a soprar no nosso sistema financeiro, graças à iniciativa do Banco Nacional de Angola (BNA) ao lançar as transferências instantâneas — o chamado “efeito Kwik” (ou STI, Sistema de Transferências Instantâneas). Acabou-se a maçada dos três dias úteis para o dinheiro efectivamente chegar ao destinatário, aproximando-nos ao que já é comum noutras paragens, como o SEPA Instant na União Europeia. Até aqui, excelente progresso.
Contudo, há um “mas” que me traz a estas linhas: por que motivo esta lógica de universalidade, esta ideia de “falar a mesma língua” nos sistemas de pagamento tropeçou quando chegámos aos QR Codes?
Antes de mais, convém lembrar que o Kwik/STI teve, de facto, uma aceitação notável. Segundo dados divulgados pelo BNA, cerca de 18 mil milhões de Kwanzas foram movimentados apenas no mês de Dezembro de 2023, sinal de que os angolanos acolheram com entusiasmo as transferências instantâneas (BNA, Relatório de Estatísticas de Pagamentos, 2023). Em poucos meses, mais de 2 milhões de contas foram abertas ou associadas ao serviço, revelando um apetite real pela eficiência financeira.
Esta evolução não só simplifica a vida das pessoas e das empresas, como também promove a circulação mais célere de valores, o que faz toda a diferença no dia-a-dia de quem depende de transacções rápidas e seguras.
Já no que respeita aos pagamentos móveis via QR Code, a história é outra. Apesar de várias — como o MCX Express (Multicaixa Express) e o seu “TPA Code” — o mercado angolano permanece fragmentado. Em muitos casos, se o comerciante optar por exibir um QR gerado pela sua app bancária, TPA (Terminal de pagamento automático) ou por alguma plataforma específica, o cliente não consegue utilizar a aplicação do seu banco de preferência para proceder ao pagamento.
Este “silo” cria barreiras artificiais, obriga a instalar múltiplas aplicações e vai contra a própria lógica de interoperabilidade que tanto celebrámos com as transferências instantâneas. Por que dificultar algo que, tecnicamente, pode e deve ser simples?
“Ter de manter três ou quatro aplicações para pagar compras do quotidiano não é prático nem eficiente. Não será altura de universalizar também o QR Code?”
As estatísticas sobre o volume de pagamentos exclusivamente via QR Code ainda são escassas, mas a realidade no terreno demonstra constrangimentos. É a típica situação em que a tecnologia existe, porém a coordenação e o padrão universal não estão garantidos.
Não precisamos de inventar a roda. Há exemplos de sucesso que provam ser possível atingir uma interoperabilidade total:
1. PIX (Brasil): Lançado em 2020 pelo Banco Central do Brasil, o PIX tornou-se um fenómeno que permite não apenas transferências instantâneas 24 horas por dia, como também pagamentos por QR Code perfeitamente integrados. Qualquer pessoa que tenha conta em qualquer instituição participante pode gerar ou ler QR Codes directamente na sua aplicação bancária preferida, sem precisar de uma app “PIX” à parte. O resultado? Segundo o Banco Central do Brasil, em 2024 o PIX já transaccionava 11,8 triliões de Reais no primeiro semestre (Banco Central do Brasil, Relatório Anual, 2024).
2. UPI (Índia): A Unified Payments Interface criou uma infra-estrutura aberta, permitindo a múltiplas aplicações — bancárias ou de fintechs — aceder ao mesmo sistema de pagamentos instantâneos. O QR Code é interoperável, o que acelerou a digitalização de milhões de transacções diárias no país, reduzindo custos e burocracias.
3. Estes casos mostram claramente que a “auto-estrada” dos pagamentos instantâneos e por QR Code pode ser livre para todos — basta haver um padrão aceite e aplicado universalmente.
A Pergunta que Fica: Por que não ir além nos QR Codes em Angola?
A mesma lógica utilizada para o Kwik/STI — a de “falar a mesma língua” entre diferentes instituições — poderia e deveria ser aplicada aos pagamentos por QR Code. O Banco Nacional de Angola, a EMIS, os bancos comerciais, as fintechs e demais intervenientes no sector têm aqui uma oportunidade de ouro para:
- Fomentar a inclusão financeira: Democratizar o acesso aos pagamentos electrónicos, beneficiando quem está à margem do sistema formal.
- Dinamizar o comércio local: Facilitar a adesão de pequenos comerciantes, que não precisariam de múltiplas soluções ou terminais.
- Consolidar a transformação digital: Se o Kwik demonstrou que podemos ser céleres e interoperáveis, por que não estender esse sucesso aos QR Codes?
É hora de o sector financeiro angolano dar o próximo passo e libertar todo o potencial dos QR Codes de forma aberta, agnóstica e interoperável. De que serve construir uma auto-estrada moderna e depois deixar que apenas um tipo de veículo circule nela?
Seguindo o mesmo raciocínio que tornou o Kwik/STI um sucesso, podemos tornar os pagamentos via QR Code verdadeiramente universais, permitindo que cada cidadão use a aplicação do seu banco de preferência para pagar numa loja ou num serviço que utilize qualquer outra plataforma.
A tecnologia está disponível. O ecossistema financeiro já provou que consegue avançar quando há coordenação e vontade. Resta apenas a decisão de aplicar em pleno a interoperabilidade também aos QR Codes. E, convenhamos, quem beneficiaria mais com isso seria o próprio consumidor angolano – e, por extensão, todo o mercado.
Fica o desafio: sejamos coerentes com o espírito do Kwik e trilhemos, sem hesitar, o caminho rumo a um QR Code universal.