Em diferentes ocasiões, o Fundo Monetário Internacional (FMI) destacou que a falta de transparência nas auditorias de empresas estatais angolanas é um “risco sistémico” para a economia do País. O alerta não é isolado: em um mercado globalizado, a credibilidade das demonstrações financeiras depende directamente da qualidade e independência das auditorias.
Enquanto países como os Estados Unidos e Portugal modernizaram suas estruturas de supervisão após escândalos históricos, Angola patina em um modelo frágil, sujeito a influências políticas e falhas técnicas. Os especialistas são unânimes em afirmar que o país precisa urgentemente de uma reforma regulatória, inspirando-se em modelos internacionais para construir um sistema de auditoria à altura dos desafios de um mercado em transformação.
Após o colapso da Enron em 2001, que abalou a confiança global nas auditorias, os Estados Unidos criaram o Public Company Accounting Oversight Board (PCAOB). Vinculado ao órgão regulador do mercado de capitais (Security Exchange Comission – SEC), o PCAOB inspecciona empresas de auditoria, aplica multas milionárias e exige padrões técnicos rígidos.
O sucesso deste organismo reside na independência: é financiado por taxas cobradas das empresas listadas em bolsa, não pelo governo. No entanto, críticos apontam que o domínio das “Big Four” (Deloitte, PwC, EY e KPMG) limita a concorrência, sinalizando um alerta para Angola, onde essas mesmas empresas operam com pouca fiscalização.
Em Portugal, donde, para quase tudo, Angola faz o “copy paste” dos seus modelos corporativos e de governança, a supervisão da actividade dos auditores externos, especialmente aqueles que auditam entidades de interesse público, é feita pela Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM). A CMVM actua como autoridade competente de supervisão da actividade de auditoria, com poderes legais para registar, inspeccionar e sancionar auditores e sociedades de auditoria. Esta função foi reforçada após a transposição para o ordenamento jurídico nacional do regulamento (UE) n.º 537/2014 e da Diretiva 2014/56/UE, os quais impõem padrões europeus de qualidade e independência nas auditorias.
O modelo português demonstra a eficácia de uma estrutura centralizada, tecnicamente qualificada e juridicamente protegida contra interferências políticas, servindo de inspiração directa para o caso angolano.
A África do Sul, membro do G20 e economia de referência no continente, enfrentou sua própria crise de credibilidade com o escândalo da Steinhoff (2017), onde falhas na auditoria mascararam um rombo de US$ 7 biliões.
O Independent Regulatory Board for Auditors (Conselho Regulador Independente de Auditores -IRBA, em inglês) reagiu, revisando padrões e aumentando a transparência nas investigações. Apesar de recursos limitados, Pretória mostra que países africanos podem adoptar boas práticas sem perder o foco em realidades ocidentais.
Em Angola, a KPMG foi criticada por falsear as contas do BESA, o extinto Banco Espírito Santo Angola, levantando suspeitas de conluio. A auditora PwC e as consultoras McKinsey e Boston Consulting Group (BCG) foram acusadas de receber pagamentos de uma empresa com ligações a Isabel dos Santos, antiga “chairwoman” da petrolífera Sonangol. Nos Estados Unidos, a Bolton chegou mesmo a pagar uma caução milionária pelo facto de os responsáveis da sua filial portuguesa em Angola terem subornado dirigentes angolanos.
A Deloitte e a EY foram igualmente expostos nos “Luanda Leaks” por terem beneficiado de contratos milionários e, por actos ou omissões, contribuindo para a derrapagem das finanças do País. Para investidores estrangeiros, episódios como esse são um sinal de alerta vermelho.
Actualmente, a supervisão da actividade de auditoria está fragmentada entre diferentes reguladores sectoriais, o Banco Nacional de Angola (BNA) supervisiona as sociedades de auditoria que auditam instituições financeiras sob seu escopo, a Comissão do Mercado de Capitais (CMC) supervisiona aquelas que auditam entidades reguladas no mercado de capitais e a Agência Reguladora de Seguros e Fundos de Pensões (ARSEG) faz o mesmo no sector segurador.
No entanto, grandes empresas não reguladas por esses três órgãos — incluindo estatais e holdings nacionais, exemplo da Endiama e outras — ficam fora de qualquer supervisão efectiva quanto à qualidade das auditorias a que são submetidas. Assim, muitas empresas de auditoria continuam a operar sem qualquer verificação independente da sua actuação.
O Telegrama sabe que a CMC elaborou uma proposta de Lei de Supervisão da Actividade de Auditoria, especialmente voltada para os auditores de entidades de interesse público, independentemente do sector em que estas actuem. A proposta prevê que a CMC actue como autoridade central de supervisão nesses casos, à semelhança do que ocorre em Portugal.
Contudo, o diploma encontra-se estagnado há mais de dois anos no Ministério das Finanças, sem qualquer avanço legislativo ou retorno institucional. Esse bloqueio impede o País de se alinhar às melhores práticas internacionais e agrava o risco sistémico.
“Angola não pode continuar a tolerar um sistema de auditoria ineficaz e opaco”, comentou um Chief Executive Officer (CEO) de um dos maiores bancos nacionais, acrescentando que “a confiança dos investidores, a sustentabilidade das empresas e a transparência do sector público dependem de auditorias verdadeiramente independentes e supervisionadas com rigor técnico”.
As experiências de Portugal, África do Sul e EUA mostram caminhos diferentes, mas todos convergentes em um ponto: sem credibilidade na auditoria, não há credibilidade nos números. “Para avançar”, diz um executivo de topo do Banco Central, “Angola precisa olhar para modelos modernos, eficazes e resistentes às pressões políticas”.